Na esteira da vitória do
Palácio do Planalto na eleição da Câmara, deputados aliados do presidente Jair
Bolsonaro pretendem dificultar a atuação de oposicionistas na Casa. A intenção
é alterar o regimento interno para reduzir as formas que hoje existem para
atrasar ou até barrar votações de projetos. A medida conta com o aval de Arthur
Lira (Progressistas-AL), que em sua campanha prometeu levar as mudanças adiante
em troca do apoio para comandar a casa legislativa.
A
ideia não é nova. Propostas semelhantes chegaram a ser discutidas na gestão de
Rodrigo Maia (DEM-RJ), mas não andaram. Cotada para assumir a Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ), a deputada Bia Kicis (PSL-DF) disse que colocará
as medidas em votação caso assuma o colegiado. “A esquerda sempre fez
obstrução. Aliás, isso é uma coisa que a gente quer mexer no regimento, para
que a Casa seja realmente governada pela maioria, dando espaço para minoria.
Mas em uma democracia, é a maioria que vence. Hoje, nosso regimento permite que
a minoria acabe sempre vencedora. Isso acaba sendo muito ruim para o País”,
disse Kicis, de acordo com o Estado de São Paulo.
Atualmente,
a oposição conta com um arsenal usado para barrar votações. São, ao todo, 17
dispositivos regimentais que podem ser apresentados pelos deputados nas
votações de projetos em plenário ou em comissões. Vão desde pedidos para adiar
a discussão, para inverter a pauta até a verificação da quantidade de
parlamentares presentes na sessão. É o chamado “kit obstrução”.
A
consequência disso é que muitas vezes as votações se arrastam a ponto de
avançar pela madrugada ou até serem adiadas. Foi o que aconteceu com a
discussão sobre o projeto que trata da proibição do aborto no País em qualquer
situação – hoje só é permitido em caso de estupro, de risco à vida da gestante
ou em caso de feto anencéfalo. A comissão criada para discutir o tema em 2017
se reuniu 18 vezes, mas a oposição, contrária à proposta, conseguiu evitar que
um texto final fosse aprovado, impedindo que a discussão avançasse. Foram mais
de 20 requerimentos de obstrução, além de inúmeras questões de ordem que
arrastaram os debates.
O
argumento dos que defendem desidratar o “kit obstrução” é dar celeridade à
análise de projetos importantes no Legislativo, em especial a pauta econômica.
Na semana passada, PSOL, PT e PSB até tentaram iniciar uma resistência ao
projeto que prevê autonomia ao Banco Central. Por três vezes, foram
apresentados pedidos para retirar a medida da pauta de votações, mas logo
rejeitados por ampla maioria. Mesmo assim, a análise do texto no plenário da
Câmara se arrastou por mais de dez horas.
“Queremos
reduzir o número de requerimentos, obstruções para podermos tramitar a matéria,
porque há momentos que chegamos aqui e passamos a noite só votando obstrução”,
afirmou o líder do PTB, Nivaldo Albuquerque (AL).
A
oposição, por sua vez, qualifica o movimento como antidemocrático. “Reduzir
nosso papel é reduzir a representação democrática na Câmara e a opinião do
eleitor. Por isso, somos radicalmente contra”, disse o líder do PT, Enio Verri.
“Isso nos preocupa. Não podemos transformar as decisões da Câmara em decisões
da maioria subjugando a minoria. O regimento garante a participação da minoria.
Esta é a casa do diálogo, da negociação, da articulação”, disse a líder do
PCdoB, Perpétua Almeida (AC).
Uma
mudança no regimento da Câmara precisa ser feita pela Mesa Diretora e votada
pelo plenário como projeto de resolução. O líder do PTB afirma que os partidos
da base do governo discutem um texto de consenso para ser apresentado –
atualmente há ao menos três projetos diferentes sobre o tema. “Uma das pautas
defendidas pela bancada é que não haja mais prazo para as sessões, sem precisar
tempo estipulado”, disse.
Hoje,
cada sessão tem, no máximo, seis horas. Após a abertura de uma nova reunião,
qualquer deputado pode pedir verificação de quórum – para atestar que há número
suficiente de parlamentares presentes para votar – e reapresentar qualquer um
dos itens do “kit obstrução”, mesmo que já tenha sido debatido anteriormente.
“O
direito de obstrução deve ser garantido, mas tudo precisa ter um limite. Quem
tem maioria precisa ver a sua pauta avançar com racionalidade e quem não tem
precisa ter seu direito de resistência preservado, de maneira que possa marcar
sua posição. Só que esse processo tem de ter uma duração razoável e curta”,
disse o líder do PSL, Major Vitor Hugo (GO).
Para
a professora de Ciência Política da FGV Graziella Testa, a existência da
obstrução é ferramenta fundamental para se evitar o que ela chama de “ditadura
da maioria” e garantir a atuação de grupos menores. “Evidentemente que por
serem minorias não vão conseguir aprovar uma agenda sozinhos, mas eles precisam
ter um espaço de atuação”, disse.
Deputada
da oposição com vaga na Mesa Diretora, Marília Arraes (PT-PE) disse que, até o
momento, essa proposta não foi oficialmente apresentada. “Caso ela seja, o que
tenho a dizer, como representante do PT na Mesa Diretora, é que defenderei o
posicionamento da bancada, que é ser contra a promoção de qualquer alteração do
regimento que possa restringir os instrumentos democráticos da minoria”,
afirmou Arraes, que exerce o cargo de segunda secretária da Câmara - a quem
compete tratar das relações internacionais, inclusive a emissão de passaportes
dos deputados. Procurado, Lira não quis comentar.