O Ministério da Saúde desviou para Covid 2 milhões de 3
milhões de comprimidos de cloroquina fabricados pela Fiocruz (Fundação Oswaldo
Cruz) para o combate à malária. O desvio de função do medicamento deixou
descoberto o programa nacional de controle da malária, com risco de
desabastecimento da droga para esses pacientes a partir deste mês de março.
Novos documentos obtidos pela Folha de S.Paulo revelam que o
ministério precisou, em caráter urgente, garantir mais 750 mil comprimidos de
cloroquina, por meio de aditivo a uma parceria firmada com a Fiocruz.
O aditamento foi proposto em novembro e assinado em dezembro.
Em janeiro, a Fiocruz entregou a cloroquina adicional para não deixar o
programa de malária sem a droga. O total é suficiente para quatro meses.
Toda a parceria -viabilizada por meio de um TED (termo de
execução descentralizada), o de número 10/2020- foi bancada com dinheiro do
SUS. Os gastos somaram R$ 258.750,00.
Em janeiro, uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da
União) concluiu que o uso de dinheiro do SUS na distribuição de cloroquina a
pacientes com Covid-19 é ilegal.
Segundo o tribunal, o fornecimento pelo SUS de medicamentos
para uso "off label", fora do previsto na bula, só pode ocorrer se
houver autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A
Anvisa já confirmou que não concedeu essa autorização.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, a Folha obteve uma
cópia de todo o processo do TED 10/2020. Os documentos comprovam o desvio da
cloroquina para pacientes com Covid-19.
O medicamento é o carro-chefe do presidente Jair Bolsonaro no
combate à pandemia desde o início da crise sanitária, há mais de um ano.
Pesquisas científicas mostraram que a droga não tem eficácia para Covid-19.
A parceria entre Ministério da Saúde e Fiocruz (vinculada à
pasta) para produção de difosfato de cloroquina 150 mg existe há quase 20 anos,
sempre destinada a malária. O plano de trabalho do termo descentralizado
referente ao período de março de 2020 a março de 2021 cita ainda outras
doenças: amebíase hepática, artrite reumatoide, lúpus, sarcaidose e doenças de
fotossensibilidade.
Por ano, o Brasil tem 194 mil casos de malária, dos quais 193
mil (99,5%) ocorrem na região amazônica. As informações estão presentes na
justificativa da parceria entre ministério e Fiocruz, que aponta a cloroquina
como uma droga com efeito contra o ataque agudo da doença. O programa
orçamentário a que se refere o TED é o de assistência farmacêutica no SUS.
O relatório da entrega da cloroquina, feita em 26 de março,
com armazenamento no almoxarifado do ministério no dia seguinte, já mostra o
desvio da função do medicamento. Ao programa "Covid-19" foram
destinados 2.008.500 comprimidos. Ao programa "Malária", 991.500.
Quase oito meses depois, diante da política de distribuição
de cloroquina a todas as regiões brasileiras, o Ministério da Saúde se viu sob
risco de não ter o medicamento para malária e decidiu procurar a Fiocruz para
aditar a parceria existente.
Em 9 de novembro, a Secretaria de Ciência,
Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde enviou um ofício à direção
de Farmanguinhos, responsável pela produção de medicamentos e vacinas na
Fiocruz, propondo um aditivo ao TED 10/2020. A necessidade era de mais 750 mil
comprimidos até janeiro.
"Como é de conhecimento de Farmanguinhos, com
o advento da pandemia pela Covid-19, esse medicamento passou a ser
disponibilizado também para o tratamento dessa virose, o que elevou o seu
consumo, especialmente no primeiro semestre. Com isso, o estoque atualmente
disponível garante a cobertura do programa de malária apenas até meados de
2021", informou o ofício.
Uma nota técnica da mesma secretaria apontou, em
vermelho, que a necessidade do aditivo era "urgente". O documento
citou que, com a pandemia, a cloroquina foi apontada pelo Ministério da Saúde
como um dos medicamentos que constam do manual de orientações para o
"manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19".
"Houve aumento no consumo deste medicamento, pois o
estoque existente passou a ser distribuído para o tratamento da Covid-19 e da
malária no âmbito do SUS", informou a nota técnica.
Naquele momento, no começo de novembro, havia estoque nos
estados até dezembro. No almoxarifado do ministério, havia 259 mil comprimidos.
E estados e capitais remanejaram outros 277,3 mil comprimidos.
Assim, conforme a nota técnica, a estimativa de cobertura de
cloroquina para malária alcançava apenas março de 2021. Eram necessários mais
750 mil comprimidos, suficientes para mais quatro meses.
No segundo semestre de 2020, segundo o mesmo documento, o ministério
passou a priorizar, para Covid-19, a hidroxicloroquina recebida como doação do
governo dos Estados Unidos. Mesmo assim, o estoque de cloroquina 150 mg para
malária já estava comprometido.
O aditivo se fazia necessário porque um novo processo de compra
de cloroquina da Fiocruz, com o emprego de recursos públicos destravados pela
MP (medida provisória) nº 940/2020, ainda estava "em andamento",
conforme a nota técnica.
O secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos
Estratégicos, Helio Angotti Neto, concordou com o aditivo "urgente"
(palavra escrita em vermelho nos documentos) ainda em novembro.
Ministério da Saúde e Fiocruz assinaram o aditivo no
penúltimo dia de 2020. Os 750 mil comprimidos foram recebidos no almoxarifado
da pasta em 14 de janeiro, numa remessa única. O destino deve ser o programa de
combate à malária, como consta nos documentos.
Em 10 de fevereiro, uma reportagem da Folha mostrou que
documentos do Ministério da Saúde registravam o uso de dinheiro da MP nº
940/2020, voltada a ações emergenciais contra a Covid-19, na produção de
cloroquina pela Fiocruz.
Uma nova reportagem, no dia seguinte, revelou a
existência de outro documento da pasta, que apontava a distribuição de
cloroquina para malária, fabricada pela Fiocruz, a pacientes com Covid-19. O
documento, porém, não dava detalhes sobre o TED feito nem sobre o
comprometimento do programa de combate à malária.
Tanto o ministério quanto a Fiocruz afirmaram,
após a publicação das reportagens em fevereiro, que não havia uso de cloroquina
da malária para Covid-19. "O termo e o aditivo não têm qualquer relação
com a MP nº 940 ou com o tratamento de pacientes de Covid-19", chegou a
dizer, em nota, a Fiocruz.
A política de distribuição massiva de cloroquina
pelo governo Bolsonaro incluiu a hidroxicloroquina doada pelos Estados Unidos
no governo de Donald Trump -a doação foi de 3.016.000 comprimidos- e a
cloroquina fabricada pelo Laboratório Químico Farmacêutico do Exército- a
produção foi de 3,2 milhões de comprimidos.
Em nota, o Ministério da Saúde disse ter garantido
o estoque de cloroquina para malária, sem prejuízos ou interrupções do
atendimento durante a pandemia. O novo fornecimento da Fiocruz, de 750 mil
comprimidos, será destinado a casos da doença, conforme demanda dos estados, afirmou.
"Toda e qualquer auditoria dos órgãos de controle será devidamente
respondida nos autos do processo."
Também em nota, a Fiocruz disse que não cabe a ela
assegurar o uso final do medicamento produzido em Farmanguinhos. Segundo a
instituição, a recomendação de qualquer droga precisa de "evidências e
bases científicas sólidas" sobre benefícios no enfrentamento à Covid-19.
A cloroquina é produzida com as indicações de uso descritas
na bula e aprovadas pela Anvisa, conforme a Fiocruz. "O monitoramento dos
dados epidemiológicos de malária no Brasil são de responsabilidade do
Ministério da Saúde. Caso o programa verifique a necessidade de abastecimento
adicional, encaminha solicitação de aditivo para execução em Farmanguinhos."