Com o desprezo do governo
federal e da população pelos riscos da Covid-19, passando pela insistência do
presidente em investir em remédios sem eficácia contra a doença até a demora na
compra de vacinas, entre outros tropeços, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira
(29) a marca de 400 mil mortes provocadas pelo coronavírus, 14 meses após a
deteccão da doença no Brasil e apenas 37 dias depois de registrar 300 mil
óbitos.
Às 12h41 desta
quinta, o consórcio de veículos de imprensa formado por Folha, O Estado de S.
Paulo, O Globo, G1, Extra e UOL registrava 400.021 mortes no país, com mais de
14,5 milhões de casos desde fevereiro de 2020. É o segundo maior saldo absoluto
de mortos no mundo, superado apenas pelos mais populosos Estados Unidos (574
mil), onde a epidemia já dá sinais de declínio.
Sob a premência
dos números e com a pressão de uma CPI para investigar sua gestão da pandemia,
o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem sido aconselhado a atenuar seu
discurso a respeito da maior crise sanitária em cem anos.
Enquanto
cruzavam as marcas de 100 mil cadáveres (em 8 de agosto de 2020), 200 mil (em 7
de janeiro deste ano) e de 300 mil (em 24 de março), os brasileiros ouviam da
maior autoridade do país que o Sars-Cov-2 é uma "fantasia da grande
mídia", uma "gripezinha" e um "mimimi".
As frases de
Bolsonaro coincidem com a escalda de mortes e, com falhas de gestão em todos os
níveis e o fatalismo de parte da população, ajudam a explicar por que o Brasil
virou preocupação mundial na pandemia.
A pequena
inflexão no discurso presidencial, simbolizada pelo uso esporádico em público
da máscara de proteção que tanto criticava e pela ênfase na vacinação ainda
podem estancar o agravamento da crise, mas não são suficientes, a essa altura,
para reverter o quadro nem apagar um saldo de mortos que supera, por exemplo, o
total das baixas de soldados britânicos na Segunda Guerra Mundial.
Colapsos
simultâneos dos sistemas de saúde pelo país já ocorrem, com falta de insumos
que vão de de oxigênio a medicação para intubação. Acelerar a vacinação, com a
encomendas de vacinas tardiamente fechadas e as entregas frequentemente
atrasadas, ainda não é uma realidade.
Apenas
recentemente Bolsonaro passou a trabalhar pela vacinação. "Estamos fazendo
e vamos fazer de 2021 o ano da vacinação dos brasileiros. Somos incansáveis na
luta contra o coronavírus", disse em pronunciamento e rede nacional no fim
de março. Nem sempre foi assim. Com a Coronavac, vacina que vem garantindo a
imunização dos brasileiros, o presidente colocou em dúvida a eficácia da droga
por sua origem chinesa (algo que o ministro Paulo Guedes ecoou nesta semana) e
travou guerra com o governador João Doria (PSDB), seu ex-alido que adquiriu o
produto.
Os primeiros
efeitos da vacinação começam a emergir quando a pandemia já se encontra
aprofundada, com grande circulação do vírus pelo país, e um cronograma incerto
pela frente. Três ministros da Saúde tentaram conduzir a crise: dois deles
-Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich- saíram do posto por divergências com Bolsonaro.
O terceiro, o general do Exército Eduardo Pazuello, mais alinhado ao presidente
ficou quase um ano no cargo. Saiu pela má gestão e como um dos investigado na
CPI da Covid-19.
Cabe agora ao
médico paraibano Marcelo Queiroga, o quarto ministro, conter a múltipla crise.
Com discurso mais modulado, em que reafirma seu apreço à ciência, Queiroga
ainda não promoveu grandes mudanças na gestão da pandemia.
O país, em
nenhum momento, conseguiu algum grau duradouro de controle sobre a doença.
Mesmo ao pairar em patamares mais baixos, como de setembro a novembro de 2020,
com médias móveis de mortes variando acima de 300 óbitos por dia, o Brasil
registrava mais de 20 e 30 mil casos diários (também em média móvel).
O rastreamento
e isolamento de casos da doença (e de suspeitos), pilares para o controle e
preconizado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) desde o início, nunca foram
colocados em prática no Brasil. Até mesmo a testagem para diagnóstico continua
pouco acessível para muitos, segundo especialistas.
Apesar do
cenário já grave no ano passado, o maior volume de óbitos veio em 2021. Em
menos de quatro meses completos do ano atual, o Brasil já soma 203.367 mortes.
Em 2020 inteiro, com as primeiras mortes no país em março, foram 194.975
óbitos.
Em parte, de
acordo com pesquisadores, a maior letalidade se deve às novas variantes do
Sars-CoV-2, com maior potencial de infecção e, consequentemente, com
disseminação mais rápida. Uma delas é a P.1, identificada inicialmente em
Manaus, capital que acabou servindo como sentinela para a gravidade das duas
ondas -até aqui- da pandemia.
Somam-se a isso
as ações ou a demora em agir do governo Bolsonaro. "Tudo agora é pandemia.
Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um
dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país
de maricas", disse ele, no dia em que o país registrava mais de 162 mil
mortes, em novembro de 2020.
O governo
brasileiro também andou na contramão do mundo ao dar status de remédio que cura
à cloroquina, integrante do chamado "Kit Covid", mesmo diante de
estudos padrão-ouro (com grupo controle, randomizados e duplo-cego) mostrando a
ineficácia do medicamento.
Não bastassem
as palavras e as indicações incorretas, o presidente constantemente
desrespeitou regras sanitárias básicas, ao não usar máscara e promover e
incentivar aglomerações com apoiadores --o que continua a fazer.
Por fim,
enquanto o mundo corria por vacinas, o governo brasileiro recusava ofertas de
doses que poderiam ter começado a ser aplicadas ainda em 2020.
O presidente
continua se recusando a ser inoculado, afirmando que só tomará a vacina após
todos os brasileiros estarem imunizados. "Eu sou chefe de Estado, tenho
que dar exemplo. O meu exemplo é este: já que não tem para todo mundo ainda, o
mundo todo não tem vacina ainda, tome na minha frente", disse.
Nos bastidores,
o assunto ainda é tratado com cuidados. O ministro da Casa Civil, general Luiz
Eduardo Ramos, afirmou, sem saber que estava sendo gravado, que tomou escondido
a vacina contra a Covid e que tenta convencer Bolsonaro a se vacinar.
"Tomei
escondido, né, porque a orientação era para não criar caso, mas vazou. Eu não
tenho vergonha, não. Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, eu
quero viver, pô. E se a ciência está dizendo que é a vacina, como eu posso me
contrapor?", afirmou Ramos.